sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

A dama da noite


Ontem à noite assisti um filme inspirante: "Fados" de Carlos Saura, um filme onde o fado é o personagem principal e a imagética da dança e da fotografia é poesia pura...

Ao sair do cinema, algo inebriados, nos deparamos com o aroma da dama da noite que impregnava todo o jardim e a quem por ele passava, sem pedir licença.
Lembrei então de um conto, creio que o segundo ou terceiro que escrevi, que apesar de ser inspirado em minha avó Maria Ana tenta contar a origem imaginária desta flor perfumada e que gosto tanto.

O quadro que ilustra é meu, de uma fase impressionista bem das antigas...


A Dama da Noite

Maria era a mais velha de uma vasta família e, desde que se entendeu por gente, sempre estava cuidando de alguém. Primeiro foram os irmãos menores, que se seguiram numa velocidade de “um por ano”, num total de 12. Depois a mãe adoeceu e, antes que Maria pudesse compreender, ela ficou órfã do feminino.
Naquela época não se podia perder muito tempo sofrendo com perdas, porque a Joana chorava sem parar, a Julieta pedia comida e o Joaquim estava apanhando do Sebastião; e todos “em coro” gritavam por ela. Quando enfim, todos dormiam, ela já estava morta, quer dizer viva de cansaço, que não tinha energia nem para chorar.
O pai, como era costume no início do século vinte, naquela cidade do interior de Pernambuco, nem deixou a cama esfriar, já se casou com a filha do dono da venda, uma moça de 17 anos, chamada Zulmira, 2 anos mais velha que Maria.
Os filhos nem tiveram tempo de emitir uma opinião sobre o comportamento da madrasta, e nem ela própria precisou testar muitos seus “instintos maternos” com os filhos de outra, posto que a “fiarada” continuou nascendo num ritmo anual contínuo. Logo os 23 irmãos já conviviam juntos, como se assim tivesse sido sempre.
De dia, os do sexo masculino, iam para escola assim que completavam sete anos e as meninas, que não precsavam estudar, ficavam cuidando da casa e da comida. Maria que desde que a mãe morreu, dividia a autoridade de dona da casa, ocupava seu tempo entre a casa e o jardim. E quando precisava assinar o seu nome usava o seu polegar, como todas as moças de família da época.
Mas o que Maria adorava era plantar flores, principalmente as que tinham mais perfumes...E gastava horas preparando a terra, escolhendo as sementes, cultivando e aguando suas flores. E “ai” do irmão que numa corrida desembestada ferisse uma das suas plantinhas, levava uma surra de cipó, com certeza.
O Jardim tomava quase todo o seu tempo. E quando ela sentia aquele vento com cheiro de chuva que precedia as pequenas tempestades de verão, Maria imaginava que o vento trazia o seu príncipe, que iria pegá-la naquele jardim perfumado e conduzi-la a uma casa branca, linda, com pequeno jardim. Lá ela teria todo silêncio e paz necessários para admirar suas flores.
Mas, os irmãos e as irmãs cresceram, e os mais velhos se foram casando. Alguns até tiveram filhos. E nunca apareceu ninguém na chuva, nem fora dela. E Maria ficava para titia. Ela sabia que não era bonita pois não tinha o cabelo liso da Juliana e nem o rosto de boneca da Zefa , mas também não era feia. Além disso ninguém cuidava melhor de uma casa e de crianças do que ela...mas virou moça velha mesmo assim...
Foi por volta dos trinta anos que ela começou a se arrumar toda noite e ficar sentada na porta de casa como se esperasse alguém. Nem os irmãos, nem o pai, nem Zulmira ousaram perguntar o que ela esperava. Mas o ritual de se arrumar todo dia às dezoito horas, se perfumar toda, jantar e dar uma longa volta no jardim, antes de se sentar na varanda, olhando a noite, se repetiu até se misturar a rotina diária da casa, que ninguém mais estranhava.
Num belo dia, digo noite, para ser mais exata, apareceu uma visita. Nem era príncipe, nem novo, nem bonito. Nazário era um senhor grisalho, de uns 50 anos, viúvo, com dois filhos adolescentes e, que vindo passar um par de semanas na casa de seu compadre, se encantou com àquela moça vizinha que toda noite olhava as estrelas. E não sendo homem de perder tempo falou com seu compadre, que conversou com o pai e que, atonitamente maravilhado, consentiu com o casório.
Maria sabia que ele não era o que ela esperava, mas naquela altura da vida, o que esperar? Tratou de aceitar logo o pretendente e em menos de uma semana conheceu, namorou e noivou com o desconhecido.
Nazário voltou para a capital, com a justificativa de ajeitar os papéis e arrumar a casa para receber a nova esposa, nunca mais foi visto.
E Maria? Continuou com sua rotina de cuidar da casa e dos jardins. Imperturbável. Completou-se 2 meses sem notícia do noivo e todas paredes da casa já cochichavam sobre o abandono e o azar de Maria. Mas ela inabalável continuava se arrumando e se perfumando toda noite.
Ninguém sabe precisamente a hora, mas numa dessas noites, enquanto passeava entre as flores, Maria desapareceu. Sem levar roupas, nem nenhum objeto pessoal. A dama da noite sumiu no ar. E desde esse dia, quando alguém passa perto da casa, à noite, sente o perfume de Maria que nunca mais saiu desse jardim.

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