segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Um conto para um desafio...


Estou participando de um concurso de contos e este texto foi desenvolvido para a segunda provocação:
VERDADE E POLÍTICA.
A idéia era um texto que contasse até onde um político pode ir para manipular a verdade...
Segue então o conto, sem cortes:

QUANDO AS ALMAS GOVERNAM

Mirante do Além era daquelas cidades que ficariam desabitadas e despercebidas para sempre, não fosse por um certo prefeito José das Almas, que a tornou famosa em todo aquele agreste pernambucano.
Esta figura lendária, o José Turgêncio da Silva, conforme foi batizado, era o primogênito de sete filhos. Pai roceiro, mãe professora, não teve muita instrução nas letras, mas era respeitado por sua sapiência, pois, por um capricho do destino, era dono de uma memória enciclopédica e excelente senso de observação.
Foi com um livro de mitologia grega, que lhe caiu às mãos, que sua vida ganhou um novo sentido. Comparou o Doutor Ananias com Zeus, descreveu o caráter do deus, na sua natureza. E o doutor, que nem médico ou doutorado tinha, mas era o fazendeiro mais rico local, e que nunca dera importância a ninguém, passou a ter por ele uma séria consideração. Ele descobriu que o patrão era exatamente igual aos outros e passou a comparar a todos com os deuses gregos, agregando simpatia por onde andava.
Aos dezoito anos, a pressão familiar o fez procurar trabalho. O senso prático o levou à carreira de agente funerário. Ele vislumbrou nesse ofício a oportunidade de ter um emprego que não lhe exigisse muito esforço e menos concorrência já que ninguém gostava de lidar com mortos. E não menos por simpatia e apego aos detalhes do que por falta de concorrentes, rapidamente abriu sua própria empresa: José das Almas.
Fez um curso de necromaquiagem e depois de tanatopraxia, onde aprendeu a arte de embalsamar cadáveres.
Rapidamente tornou-se conhecido por todos, pois, lá estava ele para dar apoio, maquiar e arrumar o defunto com o traje que mais combinasse com sua personalidade. Dominava como ninguém a arte de dar aquela expressão de serenidade e quase felicidade ao morto, que, por vezes, este ficava melhor no caixão do que em vida.
A chegada dele no hospital não era sinal de bom agouro, sendo por vezes temida, mas, assim que o óbito era constatado, não havia ninguém que não o quisesse por perto. Ele cuidava de todos os detalhes do translado, preparação do corpo, féretro, velório, divulgação e enterro. Nesses momentos, sem assombro, ouvia aqueles pensares altos ou frases inomináveis que, no instante de dor máxima, são liberadas, mas discretíssimo nunca comentou o que escutava e sempre estava disposto a oferecer o ombro para qualquer um que precisasse. Diferenciava-se ainda por acompanhar a família até a missa de sétimo dia e jamais se esquecer de encaminhar carta de mês e de ano para família do falecido.
Depois de trinta anos dedicados àquele ofício e já cansado da vida que o seu pragmatismo levara, que tivera o condão de lhe tornar um autêntico solteirão, ele tomou a decisão de se casar. Saiu à procura de moças solteiras nas casas de gente humilde - já que sabia seu lugar e tinha certeza que moça de família nobre não ia se engraçar com ele. – Essas meninas sensíveis demais e cheias de tremeliques não vão nem querer chegar perto de mim.
Numa quermesse da igreja, ele conheceu uma sobrinha-neta do compadre da sua mãe, filha de um sargento aposentado. Era uma morena de cabelos pretos e lisos, olhos espertos, sorriso sincero e andar altivo. Trocaram olhares, saíram para o cinema de mãos dadas e a moça se mostrou receptiva aos seus carinhos, sem fazer dengo demais. Ele pensou: - Gertrudes não é uma encostada, pois tem profissão de professora e ainda tem aquele corpo apetitoso... Não tenho tempo para perder: é ela!
Com a mesma serenidade e paciência com que se comportava num velório, dirigiu-se à casa do pai da moça. E depois de um aperto de mão no futuro sogro, ele disse:
– Seu Severino, queria lhe falar sobre a Gertrudes. Estou gostando da sua filha, ela é jovem, bonitona e tô pensando em pedí-la em casamento. O senhor concorda? Ou tem alguma coisa para se opor?
– Não meu filho, está me estranhando é? Faço gosto para este casamento que queira Deus me dê muito netos. E não se esqueça que ela tem as ancas grandes da família da mãe dela, boas parideiras, viu? Pode acreditar. – Declarou o velho Severino louco para passar a filha para as mãos do futuro genro.
Passado três meses do casório Gertrudes engravidou logo do primeiro filho de meia-dúzia que tiveram . E sentindo que o esposo carecia de ambição começou a incentivá-lo a aceitar os convites que os grandes da cidade o faziam nos momentos de tristeza. Sem puxa-saquismos começaram a ser visto em almoços e jantares cada vez com mais freqüência. A sinceridade e presteza dele chamaram atenção de todos que, sem nem pensar, se viu eleito vice-prefeito de Domingos Duarte, o nome original da cidade.
Bem já o disse Machado de Assis: “A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito”. E assim se deu. O Dr Eziquiel, médico cinquentão, recém-eleito prefeito, teve um infarto numa madrugada de chuva. E enquanto cuidava do morto, sem almejar posições de destaque, José das Almas, subiu ao posto de maior autoridade local daquela cidadezinha de três mil habitantes.
No começo, algumas pessoas acharam que ele pediria exoneração, mas assim que assumiu o mandato ele iniciou uma série de decisões que ninguém teve dúvida da sua intenção de dar cara nova à cidade. Era o primeiro a chegar à prefeitura e o último a sair. E como não era homem de confabulações, discussões ou sofismas, começou a editar decretos municipais para respaldar seu intento: Transformar a cidade numa obra de arte mitológica.
E, sem pesquisas ou consultas, o cemitério foi o primeiro da sua lista. Nunca se soube como adquiriu essa capacidade, mas dizem que ele via as pessoas por cores e quase sempre as descrevia intimamente sem as conhecer. Isto era o suficiente para as pessoas comprovarem seu dom.
Então chegou no cemitério com os ajudantes e ordenou:
– Joaquim, pinte o mausoléu da Dona Cícera, da Tereza do bispo, das irmãs Albuquerque e da viúva do padeiro, de vermelho vivo. – E, virando-se para o outro pintor, no mesmo tom, pediu:
– Tião, pinte de roxo violeta o da Dona Inácia, do Júlio do Genaro, da Rosinha.
E assim, em dois dias, o cemitério se vestiu de um colorido característico e único que perdura até hoje. No pórtico de entrada colocou a imagem de um jovem com asas que a população achou ser um anjo, mas a inscrição já entregava seu mentor: Tanatos, deus da morte.
Como não gostava de entrar em conversação com trabalhadores que reivindicassem direitos, nem de reunião com o Legislativo Municipal ou Tribunal de Contas, ou ainda haveres na capital, buscou logo arranjar alguém que o fizesse. Para isso nomeou o Juvêncio, contador, primo distante da esposa, seu secretário-assessor. E para oficializar o cargo nomeou-o Secretário Municipal de Governo, dando-lhe cartas brancas.
José gastava boa parte do seu tempo conversando com os que marcavam audiência, onde, sem nunca dizer não e com um sorriso no rosto, recebia a todos. Atendia alguns pedidos mais práticos e que não tomassem muito tempo ou de quem com maestria lhe soubesse inflar o ego. Para a maioria dos outros dava como perdido e quando inquirido respondia, sempre da mesma maneira:
– Venha na quarta-feira da próxima semana! – E se a pessoa comparecia de tarde na quarta-feira seguinte, ele dizia: – Mas era pela manhã. Agora não dá mais. Tenha paciência, venha na próxima quarta-feira.
Contudo, os problemas da população pouco lhe interessavam. Dedicava seu tempo em estudar e organizar projetos grandiosos, baseados na mitologia grega.
A pedido da esposa reformou o colégio municipal e depois colocou uma estatua colossal de Atena, a deusa da sabedoria, e a pintou de púrpura, em homenagem à deusa. Porém, aumentar o salário dos professores e dos funcionários públicos nem pensar. Dizia: - A maioria trabalha pouco, não se esforça para nada e só querem vida-mansa!
O hospital local, pintou de verde, a cor da saúde, e fez um monumento a Asclépio, deus da medicina, com seu cajado de cobras.
Na porta do mercado público, criou uma ponte em forma de arco e nas duas pontas colocou Hermes com suas asas nos pés. No entanto, como a oposição começou a criticar veemente uma ponte que ligava nada-a nada, ele colocou um lago abaixo com uma fonte dionisíaca e que oferecia água à população nos dias de seca.
Aproximando-se o fim do mandato resolveu deixar um marco grandioso do seu governo. Despejou os vizinhos do prédio da prefeitura, não pagou as indenizações e construiu ali uma praça, enfeitada de fontes com ninfas e uma estátua sua como fundador.
– Estou me antecipando a vocês. Provavelmente vão querer me homenagear somente quando estiver cheio de rugas e careca. Não cultuo imagens decrépitas. Então, elimino um futuro problema de vocês e o faço agora para eu mesmo usufruir do monumento. – Ele argumentou para o espanto de todos.
Passado os quatro anos, ele se viu somente com trinta e nove por cento dos votos. Seu forte concorrente, Manuel Bixiga, um jovem advogado, da antiga família dos Braga Veloso, recém-chegado do Recife, prometia aumentar salários e restabelecer a antiga tradição da cidade.
Faltando dois meses para a eleição, desesperado pelo poder que o viciava sem dó, acordou após uma noite de sonhos infernais com uma idéia. Redigiu cartas onde o enunciado citava Vitor Hugo “ Os mortos são uns invisíveis e não uns ausentes”, pois já havia aprendido algures que demonstrar saberes imprimia respeito, e frase de efeito também.
Pediu para o secretário encaminhar as cartas, que, após a saudação inicial, seguia-se detalhes particulares, para cada uma das dez famílias mais numerosas e influentes da cidade. Sentou-se no gabinete e ficou aguardando.
Todos vieram ansiosos conversar com ele e tirar dúvidas. Era quando ele confessava que o finado - geralmente o patriarca mais importante- havia aparecido em sonho e dado orientação de falar com a família isso e aquilo e no final usando frases condignas com o falecido solicitava, em transe, que apoiassem o senhor prefeito. E para dirimir dúvidas fornecia dados, gostos pessoais, pensares que ninguém sabia.
Vendo que a estratégia estava tendo resultado resolveu mudar de rotina diária.
Saindo para o trabalho, após seu café da manhã substancioso, ao invés de passar apressadamente, começou a parar na rua e conversar com o eleitorado sobre as notícias do além: - Dona das Dores, o finado João mandou dizer que gostou muito do seu jardim de acácias. - Querido Meneses, seu avô Tertuliano, disse para casar sim com a Fabiana que ele aprova a moça.- Dona Mundica é para senhora tentar perdoar o falecido e rezar dez ave-marias toda sexta-feira para ele...
E como com mortos não se brinca, os inimigos, que planejavam contratar um capanga para matá-lo, ficaram com medo das iras dos mortos e por consenso resolveram deixá-lo em paz. Sendo assim ele foi reeleito com uma maioria de oitenta e nove por cento e como primeiro ato do novo governo trocou o nome da cidade para algo mais propício: Mirante do Além.
Dizem que até morrer, aos noventa e sete anos, ele, sua Gertrudes e os seus filhos, governaram a cidade.
Na sua morte, toda população local e dos arredores compareceu e reza a lenda que houve chuva, choros e soluços em todos os cantos da cidade por quase uma semana. Contam ainda que muitos destes lamúrios, eram trazidos pelo vento, nunca se soube de onde vinha...
Com a figura de José das Almas confirma-se a máxima:

"Em política, o importante não é ter razão, mas que a dêem a alguém." E se for aos mortos melhor

Texto de Jeanne Maz

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